Diocese São Carlos out 5, 2017

Kurumins e kunhantães dos olhos Deuse seu direito de ser feliz

Kurumins e kunhantães dos olhos Deuse seu direito de ser feliz

Há crianças que, desde a mais tenra infância, convivem com o sofrimento. Ele as visita com mais freqüência do que a felicidade. Nem bate a porta mais. Entra porque tem as chaves. Usa como hospedeiro os corpos de seus pais. Transforma heróis em vilões e protetores em agressores. Esse sofrimento que desdenta o sorriso dos pais e os faz escarrar palavras pesadas contra os filhos, cava abismos afetivos dentro do lar, a ponto dos filhos preferirem a rua e os pais preferirem o bar. Muitas crianças já se deram por vencidas: os lábios que deveriam beijar suas bochehas ou soprar seus joelhos ralados estão grudados em gargalhos de garrafas, as mãos que deveriam afagar seus cabelos ou fazer-lhes cócegas, estão agarradas a copos. O salário que deveria ser usado para construir seus futuros, se torna um dinheiro sujo e amassado, depositado nas mãos de comerciantes indiferentes às suas necessidades mais prementes. Cansaram de lutar contra a bebida para ter aquilo que, sem esforço algum, ela pode ter: seus pais. Acostumaram-se a chorar, a ter medo, a sofrer e a passar necessidades da mesma forma que suas pequenas narinas foram obrigadas a se acostumar com o fétido odor do álcool. Levam para a rua, toda dor que vivem em casa.

Como numa trágica roleta da vida, vi meninos se divertindo com uma garrafa vazia de cachaça que rodopiavam com os pés. O gargalo, como o sádico dedo do diabo, apontava para eles, fazendo-os rir. De forma aparentemente inocente, mas altamente destrutiva, parecia seduzir suas bocas e vontade. Outros meninos, menores, chutavam como se fosse uma bola, uma pequena garrafa pet que já abrigou dentro de si o maldito álcool. Orei para que aquela visão fosse uma profecia de uma era sem vícios, mas senti tremer o coração por aqueles garotos, ao imaginar que, anos mais tarde, poderiam abandonar o futuro para correr atrás daquela maldição engarrafada.

Senti nascer em mim um sentimento ruim inominável quando meus olhos foram atraídos para os pequenos que se divertiam tentando se equilibrar nas sarjetas ao lado de pais prostrados na calçada pela bebida, debaixo de um sol impiedoso, enquanto os esperavam despertar de seu degradante sono.

Assustei-me ao encontrar estampado em seus tristes olhinhos o medo. Não era medo de seres fantásticos imaginários como bruxas ou bicho papão, mas o medo do demônio da bebida que transforma seus pais em agressivos e violentos monstros.

Já perdi as contas de quantos meninos e meninas, vi sentados em portas de bares, botecos e mercados, quando deveriam estar na sala de aula. Foram apartados da educação escolar, para se “graduarem” em destruição por seus próprios genitores. Conheci crianças, de várias idades, que morriam de fome enquanto seus pais e mães, embebedavam-se. Parece que o copo cheio é mais importante que a estômago vazio de seus filhos. A dependência alcoólica destruiu neles o compromisso com seus dependentes familiares. A voz do vício tem mais poder que o choro de dor ou fome de suas crianças.

Mas, quem se importa com crianças, quando viciados são um são um negócio seguro? Como conseguem descansar suas consciências sabendo que o bem estar que dão aos seus filhos custa o sofrimento de filhos alheios? Talvez porque façam-se de cegos e surdos a eles. Ou pior! Talvez acreditem que, ao apostar em seus pais, estão investindo em futuros fregueses. Trata-se, apenas, de uma questão de tempo, para aprenderem a beber. É ou não um negócio rentável?É ou não um dinheiro sujo, maldito, abominável?Ao venderem a bebida aos pais, dão de brinde aos filhos o pesadelo. Ela é a ladra cruel de sonhos, de afeto, de comida, de brinquedos, de presenças, de virgindades, do direito de estudar e do dever de serem cuidadas.

A bebida que parece resolver, momentaneamente, o problema dos pais, impõe aos filhos um inescapável sofrimento. O mesmo álcool que alimenta os filhos do comerciante de bebidas, sentencia à miséria os filhos do viciado. Nas crianças, a cachaça destrói os sonhos. Nos pais dependentes, destrói a compromisso familiar e a própria dignidade. Nos comerciantes, destrói o senso de responsabilidade social. Dos pequenos, rouba a alegria; dos viciados, a saúde e a família; dos que a vendem, a sensibilidade humana.

Há mais bares, neste município, do que parques, do que creches, do que praças, do que campos para a prática de esportes, do que as bolas, bonecas, beijos e bombons que muitas crianças terão em toda a sua infância.

A cada dose de cachaça, vendida ou consumida, um direito material e afetivo da criança é ignorado. Ao álcool de cada gole, estão misturadas lágrimas de pequenos e pequenas que as papilas acostumadas a esse veneno, nem sentem mais. Parece que, os únicos a verem essas crianças, a sentirem suas tristezas e medos, a se indignarem com o básico que lhes falta, são aqueles que não bebem ou não vendem a bebida. Sem sobriedade e sensibilidade é impossível garantir as crianças uma infância saudável e feliz. A gente começa a destruir o amanhã, quando não começa a cuidar dele hoje.

Padre André Ricardo Panassolo é do clero da Diocese de Amparo e atua como missionário na Amazônia pelo Projeto Missionário entre os Regionais Sul 1 e Norte 1 da CNBB.

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