Diocese São Carlos ago 14, 2018

A devoção a Nossa Senhora Aparecida da Babilônia

A devoção a Nossa Senhora Aparecida da Babilônia

“Faz algum tempo neste lugar onde hoje os bosques se vestem de espinhos se ouviu a voz de um poeta gritar: Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao caminhar”. Os versos do poeta espanhol Antonio Machado me visitaram tempos atrás, quando a pé me pus a caminho do santuário de Nossa Senhora Aparecida, tomando o rumo da estrada velha da Babilônia.

Uma manhã ensolarada parecia convidativa ao desincumbir de uma promessa feita na ocasião. Percorreria o percurso de 15 km da cidade até a capela, fincada no exato lugar onde se conta que uma imagem de Nossa Senhora da Conceição escapou ilesa, no pé de uma árvore, também intacta, após um grande incêndio que consumiu as matas das redondezas no final do século 19.

Sempre me despertou a história do Santuário da Babilônia. Chego a pensar que para se sentir de fato um são-carlense de coração e de fé, toda pessoa que aqui vive precisa colocar os pés ao menos uma vez em dois lugares: a Fazenda Pinhal e o Santuário da Babilônia.

A imagem da santa na Capela, a salas dos ex-votos, também conhecida como “sala dos milagres” e a sala das velas, conferem similaridade com a Basílica de Aparecida. A mística do lugar, a paisagem no entorno da igreja, porém, não deixam dúvidas de que aquele bairro de extrema simplicidade tem algo de sagrado.

A promessa que à época me levou ao santuário da Babilônia foi pela recuperação da saúde de meu irmão João Batista, que esteve à beira da morte e renasceu. Desde aquele dia mentalizei a caminhada até o santuário. Não tive receio de ir sozinho, apenas na companhia de uma pequena mochila com água, toalha e camiseta.

Saí de casa logo às 7h -obviamente sem um celular – e em instantes estava na estrada, onde os motoristas que passavam decerto achavam exótica minha presença numa data que não era o feriado municipal dedicado à santa, 15 de agosto. A alta velocidade dos carros na estrada vicinal se encarregava de dar à caminhada ares de epopeia, com risco real de atropelamento. Pouco adiante, no caminho em terra, pessoas a quem pedia informações sobre o melhor caminho, pareciam assustadas. Talvez porque não me identificassem com um peregrino, mas com alguém que fugia de casa.

Ao trilhar pelo cenário mais bonito, entre fazendas de vastas pastagens muito verdes e plantações de milho que circundam vales e montanhas, acabei na dúvida sobre o rumo certo e tive que refazer a rota. Sem uma placa que imaginava encontrar, optei pela rota aparentemente mais segura, pela estrada de rodagem. O resultado foi que percorri um roteiro muitíssimo mais longo.

Sozinho, percebi o sentido de uma citação de Nietzsche lida num livro de Otavio Frias Filho, a propósito da peregrinação deste pelo famoso caminho de Santiago de Compostela: “Por detrás de teus pensamentos e sentimentos encontra-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido: ele se chama si mesmo. Em teu corpo habita ele; ele é o teu corpo”. (Assim falou Zaratustra, I)

Pelo caminho, de fato, depois de alguns quilômetros, a consciência do próprio corpo se sobrepõe ao espírito.

Em minha peregrinação encontrei trabalhadores rurais. Um deles me ofereceu carona em um trator. Outros avisavam que ainda tinha “muito chão” até a Capela.  Passei diante de um templo evangélico, de um drive in e um motel, não muito distantes um do outro. Vi uma placa curiosa, que mais parecia pegadinha de língua portuguesa: “Faço poço e foça (sic)”. Um caminhante que vinha no sentido contrário me perguntou se faltava muito para chegar na Cidade Aracy. Operários de uma empreiteira que cortavam mato na beira da estrada apontaram para um morro, uns três quilômetros adiante e informaram: a igreja fica logo ali, passando o topo do morro.

Seria pior estar no Aconcágua, pensei, ajeitando o boné que tirei ao entrar na Capela, pontualmente ao meio dia, agora com o pensamento no Zé do Burro, “O Pagador de Promessas” de Dias Gomes e com a canção “Romaria” soprando nos ouvidos. Gosto do final, que parece incompleto: “Como eu não sei rezar/só queria mostrar meu olhar/meu olhar/ meu olhar”.

Agradeci à padroeira, rezei também diante da imagem de Nossa Senhora da Saúde e numa sala para esse fim, acendi velas. Também percorri o pátio da igreja, repleto de pés de manga e carambola. Isso horas depois de ter passado diante de um bar perto da rádio Intersom, onde um senhor mulato com a camisa do Santos FC já tomava cerveja e me saudou com um sincero “Bom dia”.

FERIADO MUNICIPAL

O dia da Assunção de Nossa Senhora, em 15 de agosto, é feriado municipal em São Carlos desde 1950, quando o prefeito Luis Augusto de Oliveira sancionou a Lei Municipal No. 1176, cumprindo a Lei Federal 605, de 1949, que permitia aos municípios instituir 7 feriados religiosos anuais.

Desde 1941 os católicos realizavam nesta data em São Carlos a festa de “Nossa Senhora da Babilônia”, que lembrava um fato ocorrido na década de 1860 quando um grande incêndio consumiu a mata da Fazenda Babilônia, a 18 quilômetros da Vila de São Carlos do Pinhal. Restou intacta apenas uma árvore com sua copa verdejante, aos pés da qual, numa bifurcação do tronco, moradores locais encontraram uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Ali foi construída uma ermida em 1870, próxima ao local onde eram sepultados escravos (por causa disso a região teve o apelido de “Babilônia dos Pretos”). Em 1894 uma cruz de ferro foi fincada no lugar e nas duas primeiras décadas do século XX correu a fama das graças alcançadas pelos moradores das cercanias. Os fatos estão narrados no livro “Aspectos do Folclore São-carlense: contribuição ao estudo do folclore na região de São Carlos”, da professora Ligia Temple Garcia Gatti (1982).

Em 1925 foi construída uma pequena capela, substituída por uma nova no ano de 1944, quando a celebração de “Nossa Senhora da Babilônia” já era aceita pela Igreja. Começavam as peregrinações de fieis, o que levou a administração municipal a oficializar a data como feriado religioso em 1949.

O feriado são-carlense foi sucessivamente confirmado por leis editadas em 1967 (gestão de Antonio Massei), 1974 (Mário Maffei) e 1990 (Neurivaldo De Guzzi). A oficialização se fundamentou num histórico sobre as origens da capela produzido em 1946 por Pedro Altenfelder Cintra e Silva que coletou depoimentos dos moradores mais antigos do bairro e de devotos que afirmavam conhecer a história. A Lei Municipal 10 257, de 1990, cumprindo a legislação federal, fixou em quatro os feriados municipais: Sexta Feira Santa, Corpus Christi, 15 de Agosto e 4 de Novembro (Dia de São Carlos Borromeu).

Assim como eu fiz, a maioria dos fiéis costuma fazer romaria a pé até a capela para cumprir uma promessa ou alcançar uma bênção.  A propósito, a paróquia de Vila Izabel (que cuida dos ofícios religiosos na capela de Nossa Senhora da Babilônia, hoje elevada a santuário), organiza uma romaria anual no dia 7 de setembro.

ORIGENS DA CAPELA

Pedro Altenfelder Cintra e Silva publicou um pequeno histórico sobre as origens da capela, coletando vários depoimentos dos moradores mais antigos daquele bairro e de devotos, que afirmavam conhecer a história. O documento registrou o “milagre da santa” que se passou às margens de um córrego também chamado de Babilônia 150 anos atrás, quando o misticismo do povo simples começou a levar muitos habitantes das fazendas vizinhas a procurarem o local para rezar ao pé da imagem. Fez-se então uma ermida e correu pela região a fama das graças ali alcançadas.

Passados alguns anos, foi construída a capela que funcionou até 1925. Foi então iniciada a construção da nova igreja, cujas obras estiveram paralisadas por algum tempo. Isso não diminuiu a devoção. Antes, aumentou, acreditando-se que era uma provação de Nossa Senhora.

Em 1944 as obras foram reiniciadas e o templo foi erguido. Milhares de peregrinos, até de outros estados, procuram-no, às vezes com ingentes sacrifícios. Em 1968 a Capela do Santuário foi incluída pela Comissão de Turismo local como um dos pontos turísticos religiosos de São Carlos e atualmente o Santuário integra o Caminho da Fé, que conduz ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida.

 

Autoria de Cirilo Braga, cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Foto: arquivo

Fotos de João Ap. Sganzella:

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